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terça-feira, 4 de setembro de 2018

No Expresso (é tão importante falar sobre isto!...)

Não é um incentivo à obesidade, é um elogio à dignidade

Tess Holliday tem 33 anos e, sim, é obesa. Mas mais do que isso é uma pessoa, e estrela das redes sociais graças à sua mensagem de diversidade. Este mês faz capa da Cosmopolitan UK e basta ver a discussão em torno disto para perceber que capas assim fazem falta. Porquê? Porque ao contrário do que muitos apregoam, esta escolha não é um incentivo à obesidade. É, sim, um elogio à dignidade, ao respeito e ao direito de se existir e de se ser livre, independentemente do corpo que se tem.
É interessante percebermos como uma capa com uma mulher com estas dimensões corporais tem o condão de espoletar um chorrilho de comentários de suposta preocupação quanto à saúde e à normalização da imagem das pessoas obesas. Como se estas pessoas tivessem de ser escondidas numa cave para o bem da saúde pública, em jeito de travão da possível influência nefasta que podem ter nos nossos adolescentes. Pergunto-me sinceramente quantas destas pessoas terão parado para se preocupar ao longo das últimas décadas com as milhares de capas que foram feitas numa apologia grave à normalização da beleza e da estética do corpo. Corpos invariavelmente estereotipados e reproduzidos em imagens transformadas em Photoshop, e depois amplamente distribuídas. Sem qualquer preocupação social, por mais que tenham tido – e ainda tenham - o condão de provocar verdadeiras frustrações e inseguranças em massa a miúdas e mulheres mundo fora que desejam ter aqueles corpos irreais. Não será isto também um verdadeiro perigo, embora socialmente aceite?
 
 
Se nos queremos preocupar com a saúde e bem-estar das pessoas obesas, talvez fosse mais produtivo começarmos por ouvi-las e vê-las enquanto pessoas no seu todo, por exemplo. Por lhes dar espaços para existirem na sua individualidade, sem serem insultadas, gozadas ou alvo de críticas e opinião alheias que não pediram a ninguém. Poderia também ser mais importante falarmos sobre o enorme isolamento que muitas destas pessoas sofrem graças ao preconceito social. Ou à quantidade de depressões severas que sofrem à conta desta repressão constante, mesmo junto de alguma classe médica. Não é certamente a excluir ou a repudiar que se está a ajudar na abertura de um diálogo construtivo sobre isto, diria eu.
 
Contudo, esta capa de revista feminina também não é sobre saúde, é sobre beleza. Mas parece-me que quando há gordos ou obesos à mistura nestas temáticas da estética, as pessoas tendem a misturar as coisas e a ficarem indignadas. O mesmo com outras condições físicas que fogem à tal norma da beleza, como as malformações ou amputações, as cicatrizes, o envelhecimento, os pelos, etc. Simplesmente porque o preconceito estético nem lhes permite imaginar que aquela mulher só está na capa daquela revista porque é considerada bonita. Sim, uma obesa considerada bonita e inspiradora enquanto destaque editorial.

“Os gordos são desmazelados e preguiçosos”, e outros preconceitos

Esta capa com a Tess Holliday revelou-se um belo exercício de reflexão não só quanto à força dos preconceitos estéticos, mas também quanto ao tabu e desinformação que existe em torno da obesidade. A construção social feita sobre esta condição médica, e as suas causas, remete-nos para a ideia do descontrolo.
 
Continuamos a achar que as pessoas que sofrem de obesidade não têm uma doença. E vaticinamos que têm, sim, uma simples atitude desmazelada perante a vida. Que são preguiçosas, gulosas, que não querem saber dos seus corpos e que têm simples comportamentos compulsivos em relação à comida. Mas por mais que estas ideias pré-concebidas tenham muito de falaciosas (leiam um bocadinho sobre obesidade em publicações científicas para perceberem melhor), tudo isto entra na esfera do socialmente reprovável, principalmente porque é uma condição de saúde externamente visível. Se é possível manter longe de olhares alheios os danos físicos provocados por outros problemas, neste caso não é. E a partir do momento em que isto é visível, quem olha sente-se muitas vezes no direito de julgar, invariavelmente num tom presunçoso, a roçar o paternalista. Os comentários a esta capa da Cosmopolitan são um belíssimo exemplo disso.
 
Sim, o excesso de peso – que não é a mesma coisa - está associado a maus hábitos de vida, como o sedentarismo e uma dieta desequilibrada, e é meio caminho andado para a obesidade. E sim, a obesidade acarreta uma série de perigos para a saúde a médio e longo prazo. A questão é que nada nesta capa ou artigo diz que é bom para a saúde ser-se obeso. Nem em momento algum incentiva quem lê a engordar como se isso fosse uma meta positiva. Por outro lado, tanto a escolha editorial (por mais que seja estratégica em termos de marketing, mas isso é outro tema) como as declarações de Tess Holliday incentivam a que todas as pessoas se sintam no direito de aceitar os seus corpos, de sair à rua sem vergonha social, de se sentirem livres para se expressarem nas várias dimensões das suas vidas e serem vistas também fora das quatro paredes das suas casas.
 
Simbolicamente, esta capa deixa claro que não é apenas a aparência do nosso corpo que nos define enquanto pessoas, nem que nos condiciona nas nossas escolhas enquanto cidadãos que têm como pilares base da vida em sociedade o direito à dignidade, ao respeito e à liberdade. Mas o que muita gente parece não perceber quando debita sentenças e bitaites sobre a aparência dos demais sem que a sua opinião tenha sido pedida, é que está a pisar as fronteiras da individualidade daquela pessoa, privando-a precisamente destes direitos básicos.


 

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